Debochadas e inesquecíveis, as marchinhas de Carnaval seriam a prova de um Brasil gentil, brejeiro e desaparecido?
As marchinhas de Carnaval - com sua mistura de humor, crítica dos costumes e invenção de moda - são testemunhos de outra era que já vai longe. Ouvidas (e lidas) tanto tempo depois, as marchinhas, esse gênero musical que amanheceu a primeira vez em 1899 com o Ó Abre Alas, de Chiquinha Gonzaga, e com o tempo iria angariar a influência do samba e até do jazz nas mãos de gente como Lamartine Babo, João de Barro, Nássara e toda uma plêiade abastecida em Brahmas e quetais, hoje são parte do inconsciente coletivo brasileiro. Mas, como o mundo que um dia as concebeu, estão realmente mortas?
Caricatura cantante
Antes que o politicamente correto desse as caras, as marchinhas faziam troça de gagos e carecas, negros e índios, homossexuais masculinos e femininos. Eram impiedosas, claro, mas acredite: no hard feelings. As ligeiras canções exageravam, mas sempre com muita graça e malícia. Tempos ingênuos? Talvez. Mas com certeza bem mais desencanados e saudáveis.
Não é à toa que Antônio Nássara (1910-1996), coautor da eterna Allah-lá-ô, foi igualmente um dos grandes expoentes da caricatura verde-amarela. Porque a marchinha, afinal de contas, é a versão musical da caricatura. Como sua parente gráfica, ela é debochada, politicamente incorreta, deforma a realidade, critica os costumes e é - digamos - uma arte "ligeira".
Grande arte menor
Num país de proporções continentais, em que o acesso à cultura acontece, na maior parte das vezes, pela mídia da vez (o rádio, a revista, a TV, a web), os gêneros de larga aceitação popular são abraçados por alguns dos maiores talentos de cada geração, que terminam dando um novo status a essa produção.
Levando tudo isso em conta, falar da arte das marchinhas sem mencionar Lamartine Babo (1904-1963) é o equivalente a Picasso sem tinta. Houve outros grandes compositores que também se dedicaram ao sagrado metiê carnavalesco, como Noel Rosa, Ary Barroso e Herivelto Martins.
Ciclo de vida
Era assim todo fim de ano. Compositores, intérpretes e músicos se enfurnavam nos estúdios cariocas de olho em fevereiro. Gravavam, intérpretes e instrumentistas amontoados no mesmo ambiente, um disquinho. O rádio também tinha um papel fundamental no ciclo de vida das marchinhas recém-nascidas. Era da adesão (ou não) dos programas mais ouvidos que as canções ganhavam as ruas. Depois, na data apropriada, eram tocadas nos bailes. E, no caso das que realmente pegavam, eram tocadas no ano seguinte - e continuariam sendo executadas até os dias de hoje.
A partir dos anos 1960, essa produção começou a murchar. Atribui-se ao Carnaval oficial do Rio de Janeiro, o do samba-enredo, e, mais recentemente, ao axé do trios elétricos o papel de coveiro da marchinha. Pode ser. É fato também que há outro mundo lá fora, em que fazer piadinha pode render tiro ou processo. São várias as razões para o gênero definhar. Alguns compositores contemporâneos tentaram revitalizá-lo, como Chico Buarque, Caetano Veloso e Moraes Moreira. A grande era das marchinhas, porém, pertence ao passado.
Ó meu Brasil
Num tempo como o nosso, ser saudosista - inclusive em relação a um passado que nem sequer conhecemos - parece mesmo ser a regra. Parece de bom tom até. Era mesmo outro o Brasil de ontem? É bem possível. Não importa. Algo permanece, porém, daquele tempo embalado pelas ligeiras canções carnavalescas e seus autores. Brincar e, tão ou mais importante, não levar a sério a própria brincadeira. Essa é a grande lição a ser retomada diariamente. Como diz o escritor Ruy Castro em Carnaval no Fogo, os autores das marchinhas eram 'homens inteligentes e abençoados com uma inesgotável veia melódica e humorística. Graças a eles, o carioca refinou seu jeito de criticar tudo na base da brincadeira - e também de aceitar a crítica". Isso vale para todos nós. No Carnaval ou depois dele.
PARA SABER MAIS
· As Marchinhas de Carnaval, Roberto Lapiccirella, Editora Musa
· Pedras de Toque da Poesia Brasileira, José Lino Grünewald (org.), Editora Nova Fronteira
· Carnaval no Fogo, Ruy Castro, Editora Companhia das Letras
FONTE: Texto de Reportagem: Leandro Sarmatz , disponível também aqui.
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